O sono e a sociedade

Durante muitos anos tive dificuldade em compreender o feminismo e o machismo. Para mim era fácil - existem homens e existem mulheres e nunca me passou pela cabeça que por ser mulher poderia não fazer o que me apetecesse e como me apetecesse. Mesmo crescendo sob uma educação machista. Já bem adulta confrontei-me pela primeira vez com homens que se achavam mais inteligentes e capazes por serem homens, que tinham direitos adquiridos por serem homens ou necessidades a serem satisfeitas apenas por serem homens.



Ser homem ou mulher não é uma característica que implique ganho de direitos ou privilégios per se. Resulta de uma combinação genética que leva à manifestação de características sexuais e físicas diferentes. Claro que as diferenças hormonais entre sexos também acarretam outras diferenças. Mas no essencial há poucas mais diferenças relevantes. Os domínios cognitivos mais desenvolvidos parecem ser diferentes nas mulheres e nos homens. Resultam de influência da sociedade que os desenvolvem mais ao estimular de forma diferente ou é intrínseca ao género? Mesmo que seja intrínseco ao género é relevante ou justificação relevante para que haja um comportamento discriminatório para com o sexo feminino ou masculino?



Ontem estive a ver a série de The Crown. Elizabeth Windsor é a rainha. E nem o facto de ser rainha, provavelmente a mulher mais poderosa do mundo, a protege dos comportamentos machistas da sociedade que lidera. Pior, é prisioneira dessa sociedade. Mas a rebeldia da sua irmã, a princesa Margareth, também não é suficiente para conseguir a liberdade feminina para procurar a felicidade.



E que consequências tem no sono da mulher viver numa sociedade machista?



Em minha opinião tem vários tipos de consequências em vários domínios dependendo de que tipo de comportamento machista a mulher é vítima. O comportamento mais facilmente reconhecido é da mulher responsável pelas tarefas domésticas (e, os maridos, podem eventualmente ajudar… adoro os maridos que ajudam as mulheres… acho que é a pior face do machismo… os que fazem de conta que não são) pelo que após o horário laboral tem de se dedicar às atividades domésticas. E como o dia tem apenas 24 horas para a mulher e para o homem, se um fica com mais atividades para além do trabalho, necessariamente terá menos tempo para descansar (que é fundamental para depois ter uma boa noite de sono) ou até mesmo menos horas de sono. E é-lhe mais difícil ir ao ginásio ou realizar qualquer exercício físico.



O exemplo que dei é talvez o mais fácil de perceber ou reconhecer. Mas depois existem outros exemplos, talvez mais subtis mas igualmente duros para com as mulheres. Homem que faz a sesta está cansado porque trabalha muito; a mulher que faz a sesta gosta muito de dormir, é preguiçosa, no limite até um pouco aborrecida ou mesmo depressiva. O homem “raramente” ressona, “só as vezes quando dorme de barriga para cima”, porque as mulheres são muito exageradas; no entanto, mulher que ressona torna o sono do homem totalmente impossível.



E quando existem filhos que acordam durante a noite? Às vezes os pais também acordam… não é sempre a mãe a ir tapá-los porque às vezes os pais também vão. Extraordinária a ajuda que os pais dão às mães… Em consulta, sou muitas vezes obrigada a perguntar se o filho é só da mãe e se o pai não dorme na mesma casa. Ser pai ou mãe implica os mesmos direitos e os mesmos deveres.



E podemos avançar para situações do sono mais raras ou bizarras. A sexomnia é uma parasomnia durante a qual o indivíduo apresenta um comportamento sexual enquanto dorme. É uma entidade clínica rara e mais frequentemente descrita nos homens. E porque é que é que se pensa que é mais frequentemente descrita nos homens? Porque é uma vergonha as mulheres masturbarem-se durante o sono. Para o homem? Uma necessidade vista como normal.



É certo que também há comportamentos machistas que funcionam ao contrário, colocando o homem no papel da vítima. Por exemplo, é frequente ouvir os doentes do sexo masculino dizer que sempre lhe foi dito que os homens não precisavam de dormir porque têm é de trabalhar. Ou os jogos de futebol ou padel com os amigos até tarde de noite tornam muitas vezes o sono não reparador e de má qualidade.


O sono dos homens e das mulheres parece ter características diferentes. Algumas dessas diferenças parecem existir devido às diferenças hormonais entre os dois sexos. Mas uma boa parte das diferenças apresentadas nos estudos, como o facto das mulheres sentirem mais os efeitos de um sono de má qualidade ou apresentarem mais dificuldade em adormecer, pode resultar de uma sociedade mais exigente, mais agressiva e mais injusta para as mulheres.




A sociedade em que vivemos está cheia de comportamentos agressivos, violentos e discriminatórios para com as mulheres. Porque todos nós deixamos. Não falo de sociedades muçulmanas. Falo de sociedades com uma cultura judaico-cristã extremamente enraizada como a nossa. Aos homens, muitas vezes porque lhes dá jeito manter hábitos e tradições que quase sempre os protegem e lhes são vantajosos, às mulheres porque existe uma competição não declarada para o prémio da Super Mulher. As mães esperam (e muitas vezes exigem em silêncio) que as filhas sejam as Super Mulheres, educando-as para tal, as sogras criticando quando assim não é, e as amigas mostrando a felicidade de assim o serem. Uma mulher pode adorar ser mãe, ama quase sempre o seu filho, mas nenhuma mulher tem prazer em acordar durante a noite para consolar um filho que chora com pesadelos. Fá-lo com o sentimento de proteção que a biologia se encarrega de criar. Ponto.



E se há muitos exemplos de homens e mulheres que não se revêm nestes comportamentos, tenho sérias dúvidas que existam assim tantos que não se revejam em nenhum destes exemplos. Que a sociedade tem mudado no sentido destes comportamentos se modificarem é uma enorme verdade. Mas os comportamentos modificam-se e quais são os novos comportamentos adotados? São comportamentos igualitários ou igualmente discriminatórios apenas de uma outra forma?



Para mim uma injustiça é uma injustiça, uma deslealdade é uma deslealdade, um acto discriminatório é um acto discriminatório, independentemente de ser praticada por um homem ou uma mulher. E os comportamentos mais vis são provavelmente aqueles que são praticados com subtileza e delicadeza como um “descansa que hoje sou eu que vou preparar o jantar”.                                   

Comentários

  1. Olá Dra. Dulce. Qual é a maneira mais fácil de marcar consulta consigo? Dá consultas? Muito obrigada, Raquel

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